PARALISIA CEREBRAL

Paralisia Cerebral (PC) não é uma entidade única em termos neuropatológicos ou etiológicos, pelo contrário engloba situações muito heterogéneas de incapacidade no desenvolvimento cujo denominador comum é apresentarem alteração permanente da postura e/ou movimento traduzida sempre por limitação funcional motora. No entanto frequentemente associa limitações a outros níveis sendo pois multi-incapacitante.

Na sua origem tem que haver lesão cerebral não-progressiva ocorrida num período muito precoce do desenvolvimento cerebral, desde o período fetal até aos primeiros 2 a 3 anos de vida. Apesar das severas incapacidades motoras e físicas ficam pois excluídas da designação PC, situações como doenças neuro-musculares, spina bífida com envolvimento neurológico ou doenças degenerativas do sistema nervoso.
PC ao ser definida como incapacidade no desenvolvimento, é vista como ocorrendo muito cedo na vida da criança e embora tenha base neurológica, em termos individuais é caracterizada pelas suas características funcionais específicas mais do que pela etiologia.
O que atrás fica dito, também implica que se é verdade que a lesão cerebral é fixa isto é, não-evolutiva, no entanto as manifestações clínicas podem modificar-se perante os desafios que vão surgindo com o desenvolvimento das crianças, a terapêutica instituída e a plasticidade cerebral, tão importante nos primeiros anos de vida.
A persistência da designação “Paralisia Cerebral” apesar da forte agressividade do nome, tem a ver com as suas necessidades terapêuticas que apresentam especificidade própria e daí, tornar mais fácil elaborar programas com largas equipas diferenciadas em várias áreas. Ou seja o reconhecimento por todos, da entidade e da designação, apresenta francas vantagens administrativas e pragmáticas e que na ausência de melhor designação, vai persistindo

Incidência

Aproximadamente dois em cada mil nados-vivos anualmente (2/1000) têm o diagnóstico de paralisia cerebral na Europa.

Na vigilância a nível nacional em Portugal realizada a partir de notificações de casos de paralisia cerebral aos 5 anos de idade de crianças nascidas em 2001 mostrou incidência (isto é nº de casos novos) de 1,93 por mil nados vivos. A mesma vigilância nacional posteriormente deu conta de incidências significativamente mais baixas nos nascidos nos anos seguintes em 2002 e 2003 mas houve muito menor número de notificações pelo que o valor de 2001 parece ser mais próximo do real apesar de também aí reconhecer-se ter havido subnotificação.

Etiologia. As causas?

Habitualmente não há causa única para a paralisia cerebral. Múltiplos factores de risco com ponderações variáveis associam-se e de forma sinérgica contribuem para a lesão cerebral, daí resultando em paralisia cerebral.

Que fatores de risco? Desde logo a grande prematuridade que em todas as séries assumem papel importante. Nos casos com PC notificados em Portugal de crianças nascidas em 2001, 42,6% desses casos diziam respeito a prematuros tendo nesse ano a taxa de prematuridade no nosso país sido de 5,64% ou seja uma diferença muito significativa.

Nos que nasceram prematuros, as patologias mais frequentemente encontradas são a leucomalácia periventricular e o enfarte venoso após hemorragia intraventricular, ambos consequência da grave imaturidade da rede vascular entre as 24 e as 34 semanas. No entanto têm sido encontradas nestes casos, não só lesões da substância branca cerebral como sugerem as patologias supra, mas também lesões neuronais com particular realce para neurónios “imaturos” situados entre o tálamo e o córtex cerebral bem como lesões axonais explicando assim melhor a co-morbilidade que os indivíduos com baixa idade gestacional apresentam e que vão bem além da incapacidade motora.

A formação do sistema nervoso central inicia-se “in utero” com as suas fases conhecidas de proliferação, migração e organização neuronal muito ativas até 20-24 semanas que antecedem a sinaptogénese, proliferação dendrítica e mielinização que se prolonga pelos primeiros anos após o nascimento. É pois um período muito longo de vulnerabilidade para várias agressões, podendo determinar lesões malformativas, predomínio de lesões da substância branca e/ou da substância cinzenta.

Se quisermos sistematizar podemos pois subdividir as lesões em:

  1. ocorridas antes das 20 semanas com malformações cerebrais ou cerebelosas por lesões na proliferação, migração ou organização neuronal daí resultando por exemplo lissencefalia, paquigiria, polimicrogiria ou hipoplasia cerebelosa,
  2. ocorridas entre as 20 e 32-33 semanas (com destaque para as referidas lesões da substância branca supramencionadas, frequentes nos prematuros com PC) 
  3. as que ocorreram a termo ou após 34 semanas (lesões dos gânglios da base/ tálamos ópticos, lesões parasagitais ou ainda enfartes cerebrais muitas vezes da artéria cerebral média). Estes enfartes são habitualmente associados a nascidos de termo ou próximo do termo e com paralisia cerebral espástica unilateral podendo suceder também enfartes em muito prematuros mas por lesões já das lenticuloestriadas.

Recentemente em estudos populacionais prospectivos dá-se conta que em países desenvolvidos 10,5% dos chamados “extremamente prematuros”, que agora nascem cada vez mais, isto é com menos de 27 semanas de gestação, vêm a desenvolver paralisia cerebral. Nascem pois inadequados para os desafios que encontram. Por outro lado muito recentemente estudos populacionais muito rigorosos mostraram que apesar disso com os cuidados agora existentes, a prevalência de PC baixou significativamente na primeira década do século XXI exceto no grupo que nasceu entre 28 e 36 semanas onde apesar de ter flutuado não foi significativa a diferença.

Vulnerabilidade fetal:

Imensos estudos depois, na procura de factores causais, pode-se concluir que vários fatores associam-se nessa vulnerabilidade fetal. 

Fatores de risco pré-natais (polimorfismos genéticos específicos, infecções da unidade mãe/placenta/feto, radiações, drogas, gemelaridade, perturbações da trombofilia e da função tiroideia, acidentes vasculares cerebrais (AVC)), perinatais (com grande prematuridade e asfixia perinatal grave com encefalopatia hipóxico-isquémica à cabeça) e pós-natais com infecções (sepsis e meningoencefalite), afogamentos, AVC ou traumatismos cerebrais severos nos primeiros anos de vida.

Muito longe vai o tempo em que paralisia cerebral era sinónimo de asfixia do bébé ao nascer. Claro que embora hoje mais rara, é uma situação possível e aliás já foram definidos critérios para considerar-se quando é que a asfixia é severa o suficiente para desencadear paralisia cerebral de “per si”. Assim foram definidos critérios essenciais (determinados valores de pH e excesso de base na gasometria do cordão umbilical, encefalopatia precoce com convulsões neonatais precoces e o tipo de paralisia cerebral) e os que sugerem (não-evolução de um mau índice de Apgar, disfunção multisistémica e alterações na ressonância magnética encefálica precoce).

Tipos de paralisia cerebral.

A necessidade de sistematização faz classificar a paralisia cerebral pelo seu denominador comum, que é a incapacidade motora e assim há formas bilaterais ou unilaterais mas também pela alteração neurológica dominante e daí surgir classificada como do tipo espástico, disquinético ou atáxico.

Assim é possível e desejável no que se refere a intervenção, que todos sejam classificados como tendo paralisia cerebral espástica unilateral ou bilateral, disquinética ou atáxica. No entanto ao definir alguém com PC deve-se não apenas caracterizá-lo pela anomalia neurológica major, mas também pelo seu grau de incapacidade funcional motora não-motora para melhor determinar o processo de habilitação.

No que diz respeito a gravidade da incapacidade funcional é possível classificar de níveis I a V, sendo V o mais grave, a função motora global (GMFCS gross motor function classification system), a motricidade motora fina bimanual (BFMF), o desempenho na alimentação, a comunicação, o controle da baba e muitas outras.

Intervenção

Paralisia cerebral sendo o paradigma de entidade com múltiplas incapacidades no desenvolvimento, exige modelo de reabilitação muito completo, se tivermos em conta prevenção primária, secundária e terciária. 

Durante longos anos a intervenção no que se refere a intervenção de prevenção primária procurou conhecer factores etiológicos para reduzir a incidência de paralisia cerebral e muito foi conseguido na qualidade da resposta pré e perinatal e com a resposta à prematuridade, só que passaram a nascer crianças com ainda menor idade gestacional criando desafios sempre crescentes pela sua não-preparação para o nascimento.

No que diz respeito à restante intervenção terapêutica, durante longos anos foi práticamente apenas dada ênfase à componente motora e realizada por longos períodos em instituições de reabilitação. 

Ora por todo o lado, cedo deu-se conta da larga comorbilidade associada, como sucedeu em estudo populacional na Noruega recentemente publicado em 95% de todas as formas de paralisia cerebral. Lugar destacado para perturbações na comunicação, visuomotricidade, aprendizagem, alimentação, estado nutricional, defeitos sensoriais e epilepsia pelo que as equipas de reabilitação em paralisia cerebral passaram obrigatoriamente a incluir as várias valências. Criaram-se associações de paralisia cerebral por todo o lado já numa óptica diferente multidisciplinar/interdisciplinar em que o modelo procurado é a perspectiva multidimensional e interdisciplinar e em que a família é reconhecida logicamente como importante elemento na decisão da intervenção mais adequada em cada momento. 

Todos com PC devem pois ter sempre a resposta de uma equipa que integre fisioterapeuta, terapeutas ocupacional, da fala e de psicomotricidade, psicólogo, assistente social, nutricionista e várias especialistas médicos estando numa 1ª linha fisiatras, neuropediatras, neurologistas, ortopedistas, oftalmologistas, otorrinolaringologistas e numa 2ª linha, muitas outras especialidades com realce para gastroenterologia, pneumologia, psiquiatria, e imagiologia.

As limitações na PC são tantas e afinal não demos ainda conta:

  1. de necessidades nutricionais não-cumpridas em micro e macronutrientes que têm a ver com diferente consumo individual, que decorre de diferentes envolvimentos motores, perturbações oro-motoras, refluxo gastro-esofágico e com o tempo necessário para as refeições. Muito recentemente análise de 42 estudos de qualidade mostrou que 44% das paralisias cerebrais apresentavam incontinência salivar, 50,4% problemas na deglutição e 53,5% perturbações alimentares em particular nas formas com mais grave envolvimento motor
  2. do deficiente crescimento muscular já demonstrado no 2º ano de vida que contribui decisivamente para as muito precoces contracturas articulares a nível dos membros superiores e inferiores, pela falta de sinergia entre o crescimento ósseo geneticamente determinado e o crescimento muscular, tendo por isso necessidade de intervenção muito precoce
  3. da epilepsia encontrada em 43% no estudo populacional realizado em Portugal, referente a crianças com diagnóstico de PC aos 5 anos de idade, nascidas entre 2001 e 2003. Nesta perspectiva, uma equipa para paralisia cerebral deve incluir sempre alguém com capacidade de dar resposta a esta tão importante morbilidade e cuja prevalência ao longo da vida varia
  4. do risco de luxação coxofemoral (deslocação da coxofemoral é a 2ª causa de deformidade musculoesquelética na criança com PC depois do pé equino), escoliose e baixa densidade óssea tão prevalente nos que apresentam maiores limitações motoras. Assim nos classificados como GMFCS-IV e V, pelo menos 95% aos 10 anos têm sido diagnosticados com deficiente densidade óssea que podem configurar problemas graves no futuro
  5. da dor que muitas vezes perturba os doentes que por razões da sua patologia não conseguem comunicar fácilmente e por isso tantas vezes parece ser subdiagnosticada. Embora muitas vezes de causa musculoesquelética, tem outras causas possíveis que devem ser investigadas e a dor tratada
  6. das imensas dificuldades encontradas na sua participação nas actividades escolares com a consequente incapacidade de aprendizagem. Necessidade de apoios específicos técnicos para a sua participação
  7. da distância a percorrer para os centros de reabilitação e do custo elevado não apenas nas viagens como nos produtos de apoio/ajudas técnicas
  8. das necessidades mais prementes dos adultos desde o emprego às necessidades de participação em actividades físicas e à importância da dor.

Base da intervenção:

Por tudo o que fica dito, hoje as diversas incapacidades e não apenas a motora, devem estar identificadas em todas as PC e levando por isso a ter resposta adequada multidimensional. Resposta que deve ser muito precoce numa óptica de prevenção das complicações.

Esta resposta à PC deve envolver pois, instituições especializadas para os apoios multidimensionais necessários como sucede com as associações de paralisia cerebral (em Portugal iniciadas em 1960) lideradas por famílias e técnicos, mas também com equipas multidisciplinares a nível hospitalar e extra-hospitalar, que no entanto exige-se que sejam muito completas, com experiência na área e a trabalhar coordenadas. 

Por todo o lado, com a maior esperança de vida na PC, há muito deu-se conta de que a intervenção não deveria ser com os doentes e suas famílias “sequestrados” em instituições, mas que a reabilitação deveria ser na comunidade onde pretende-se que funcionem integrados.  

Passou a ser decisivo “habilitar a participar” e obrigou a comunidade a disponibilizar respostas em todos os lugares, impedindo a sua segregação maximizando potencialidades, minimizando complicações, melhorando a autonomia e reduzindo a desvantagem para melhor qualidade de vida deles e suas famílias. Apesar de todo o investimento feito, os resultados são ainda pobres em termos da sua participação na vida adulta a todos os níveis da vida em sociedade mesmo naqueles com normal capacidade intelectual.

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