A epilepsia é por isso frequentemente sobre diagnosticada e muitas crianças são assim indevidamente classificadas. Estudos recentes estimam que 20 a 30% das crianças consideradas como epilépticas, não têm realmente este diagnóstico. Neste documento abordamos precisamente situações que parecem epilepsia, mas não são e que na maioria das vezes são também aparatosas, surgem de repente e de forma inesperada.
Antes da abordagem de cada uma destas situações mais frequentes convém ainda realçar a importância do número de crises e que começar por fazer a distinção entre ter uma convulsão ou uma crise e ter epilepsia. O diagnóstico de epilepsia obriga à recorrência de crises, e uma crise única que qualquer um de nós poderá ter nalgum momento da vida não pode ser igual a epilepsia. Alguns estudos revelam que cerca de 1% da nossa população terá pelo menos uma crise durante a vida e apenas metade (0,5%) terão epilepsia.
Por outro lado existem várias situações clínicas que se repetem e que embora partilhem algumas características com a epilepsia, têm mecanismos completamente diferentes. A estas, chamamos crises paroxísticas não epilépticas e são alterações súbitas (por isso se designam por paroxísticas) do comportamento cuja fisiopatologia contrariamente à epilepsia não é explicada por alterações da atividade eléctrica cerebral, mas por vários mecanismos distintos. São frequentes, com uma incidência que pode ser 6 vezes superior à da epilepsia, benignas, transitórias e não necessitam de medicação.
Espasmo do soluço, é uma situação muito frequente entre os 6 meses e os 4 anos (sobretudo até aos 18 meses), que pode surgir sob 2 formas clínicas: a forma pálida e a forma cianótica e em que existe sempre um factor desencadeante. Ocorre quando a criança é contrariada ou perante uma frustração, começa a chorar, sustem a respiração, e pode ter perda de conhecimento. Esta perda de conhecimento pode ser breve, retomando o choro ou ser mais prolongada surgindo mesmo alguns movimentos anormais ou incontinência de esfíncteres. A forma pálida tem por vezes um diagnóstico mais difícil porque o factor desencadeante é mais subtil. Acontece com algumas crianças quando na sequência de um susto ou um leve traumatismo, começam a chorar, sustêm a respiração e ficam brancas. Qualquer que seja a forma, o tão frequente espasmo do soluço é uma situação benigna, ou seja a criança não vai ter complicações, estes episódios vão passar e não existe qualquer tratamento eficaz. A única forma de os evitar é manter a tranquilidade (o que por si só já reduz a frequência das crises), evitar os estímulos desencadeantes ou desviando a atenção.
Lipotimia ou desmaio equivale a uma perda transitória da consciência, por uma diminuição da chegada de oxigénio ao cérebro. É mais frequente na adolescência, tem habitualmente sintomas premonitórios como a palidez, falta de força, tonturas, ou diminuição progressiva da visão e tem sempre um fator desencadeante. Estes são frequentemente o excesso de calor, muito tempo em pé, locais com muita gente ou ainda situações de tensão emocional. A recuperação é relativamente rápida e o próprio adolescente vai na maioria das vezes conseguir identificar o fator desencadeante podendo então evitá-lo e diminuir ou evitar estes episódios.
Perturbações do sono ou parasómnias, são situações como o bruxismo (contração dos músculos da face e ranger dos dentes durante o sono profundo), o sonambulismo (em que a criança habitualmente em idade escolar, fala, senta-se ou deambula pela casa, não responde e de manhã não se recorda), os terrores noturnos (na criança mais pequena, que 1-2 horas depois de adormecer grita, senta-se na cama muito assustada não reconhecendo os pais e não respondendo) e os pesadelos (em crianças um pouco mais velhas, na segunda metade da noite e que ao contrário dos terrores noturnos, nas noites seguintes recorda-se e tem medo de adormecer) As parasómnias são muito frequentes e muitas vezes podem levar a dificuldades no diagnóstico por haver algumas epilepsias em que as crises também acontecem durante o sono. Estas perturbações do sono, são mais frequentes no sexo masculino, há muitas vezes história familiar, associados em alguns casos a períodos de maior excitação ou cansaço e ao contrário da epilepsia é frequente a coexistência ou aparecimento de vários tipos de acordo com a idade.
Criança distraída é a que durante as suas atividades de rotina como por exemplo na escola, fica no mundo dela, parada, a olhar para a janela e alheia ao que a rodeia. Estas crianças não têm ausências (episódios com segundos de duração, característicos da epilepsia de ausências), mas estão mesmo ausentes durante longos minutos, provavelmente porque o tema não será suficientemente interessante para lhe captar a atenção.
O diagnóstico será tanto melhor quanto melhor for a recolha da história clínica. Como vimos estas são situações com características muito próprias e que na maioria das vezes se for feita uma descrição exaustiva do que se passou, tentando recriar todo o ambiente, será fácil para o médico da criança fazer o diagnóstico. Todos os pormenores são importantes e podem evitar consequências como submeter a criança a uma série de exames, sujeitar a criança e a família a um stress desnecessário e uma perda de tempo inútil. Convêm ainda salientar que nalgumas situações de diagnóstico mais difícil, será importante aguardar a eventual repetição destas crises e se possível fazer um registo de vídeo. No início, os pais ou quem observa estas crises, pela ansiedade que estas podem causar, também poderão não estar nas melhores condições para as descrever ao médico por isso vale a pena manter a calma e aguardar. É sempre preferível atrasar o diagnóstico do que fazer o diagnóstico errado de epilepsia, não só pelo estigma associado ao rótulo “é epilético”, mas também porque isso levará a criança a iniciar uma medicação desnecessária e da qual não irá retirar qualquer efeito benéfico.